Eu sabia que nunca mais seria o mesmo.
Acordei numa maca, coberto por um lençol branco e vários
equipamentos do meu lado. Até certo ponto entendia o que havia
acontecido.
A única pergunta que tinha era “por que a morte me recusou?”.
Não fazia sentido, sendo que era eu quem dirigia o carro, sendo que
era eu quem estava drogado, sendo que era minha a responsabilidade
com a família.
Mulher, filho e filha.
Por que apenas eu tinha ficado?
Era como se algo importante estivesse oculta, ou que tivesse pulado
um episódio importante daquela série chamada Minha Vida.
Realmente não entendia.
Uma agulha injetava um líquido amarelo no meu braço direito.
Tirei-a dali e sentei. Uma forte dor de cabeça me arrebatou.
Estava usando uma daquelas largas roupas de paciente, com parte das
minhas nádegas para fora. Sobre a poltrona encontrei minha camiseta
velha do The Doors e uma calça jeans da qual não lembrava, porém
que me servia perfeitamente.
Ao erguer os braços para colocar a roupa, senti uma dor lancinante
sobre meu peito. Percebi que vários pontos fechavam uma sutura
provocada por cacos de vidro. Eu não podia forçá-la.
De alguma maneira, ninguém me impediu de sair do hospital. Andei
tranquilamente – embora um pouco curvado – pelos corredores.
Entrei no elevador, e saí pela porta automática do primeiro andar.
O frio de outono bateu em meu rosto, e eu percebi que estava com
fome. Bati as mãos no bolso e escutei algumas moedas. Infelizmente,
aquilo só dava para o café e a passagem de ônibus.
Fui até uma padaria ali próxima da saída do hospital e pedi meu
expresso. Aquilo me esquentou um pouco, e eu decidi terminar de
tomá-la numa praça que se estendia por um grande gramado verde
coberto de folhas secas.
Uma música desconhecida tomava minha mente. Talvez fosse ela que eu
escutasse no momento do acidente.
Ao atravessar a avenida, notei uma mulher sentada num banco próximo
ao centro da praça.
Ela era morena, mas tinha os cabelos tingidos de loiro, de uma
maneira que só a raiz mostrava-se negra como seus olhos. Eram longos
e macios, mesmo após anos de tintura.
Óculos caíam sobre seu nariz, de modo que não se encaixavam
direito e era preciso arrumá-lo após algum tempo de leitura.
Ah, tinha o livro também, mas que não consegui identificar.
Eu a conhecia. Na realidade, aquela mulher estava em minha mente
desde meus doze anos.
A primeira vez que a descrevi, ela saía da chuva e entrava numa loja
de roupas. Com um corpo juvenil, vários homens ficavam tentados ao
vê-la.
A segunda vez, era uma bruxa. Nascida em meio à inquisição, fora
treinada nos rituais considerados subversivos pela Igreja, e mandada
à fogueira aos trinta e três anos de idade.
E assim foi, sucessivamente, livro após livro. Aquela mulher era uma
criação minha, diretamente da mente.
Caminhei até ela e parei. Ergueu seu rosto e me olhou com o rabo dos
olhos. O que estava acontecendo comigo?
- Olá – ela me disse.
- Olá – eu respondi.
- Há quanto tempo.
Sim, fazia tempo que ela tinha desaparecido do meu espaço criativo.
Seus olhos escuros foram trocados por rainhas, embaixadoras, e até
outra escritora em seu livro mais recente.
- Você existe de verdade?
- Sim. Estou aqui, não estou?
- Não faz sentido.
Levantei minhas mãos para tocá-la.
Por alguns instantes, delirei. A mulher estava indo em direção a um
homem e seu cachorro.
Sua mão estava suja de sangue, e quando o encontrou,
transformaram-se em minha mulher, eu e meu filho.
Quando recuperei a consciência, o cão estava atropelado no chão,
ela estava ainda ao meu lado e o rapaz gritava por ajuda.
O que era tudo aquilo?
- Eu realmente estou contigo – ela me olhava com um pensamento
malicioso.
- Você é algo da minha cabeça, algum distúrbio depois do
acidente.
- Não. Eu vim porque a Morte não te quis, depois de ser jogado às
traças pela Vida.
Suas mãos enluvadas aproximaram-se do meu rosto, e ergueram minha
cabeça até que meus olhos pudessem enxergar aqueles olhos negros. O
céu ficou laranja, as pessoas sumiram da praça e só havia ela,
Ilusão, com os cabelos loiros brilhando, entretendo-me com luzes de
várias cores diferentes. Era como se minha fotofobia não existisse
mais.
- Eu sou o que sobra quando você não tem mais nada, meu homem.
Refleti sobre o que me foi dito. Fazia sentido, mas não era lógico.
Eu nunca havia escrito sobre a personificação da Ilusão.
- Me segue?
O mundo voltou ao normal, eu lhe dei minha mão, e saímos.
Apaguei novamente.
Acordei em casa, no colchão. Fotos da minha família estavam
espalhadas pelo chão. Eu estava nu, e uma música calma saía do
Stereo da TV. Beatles, talvez. Ou apenas alguém com a voz do Paul
McCartney.
Um barulho de torneira veio do banheiro, e a porta se abriu.
Era ela, Ilusão.
Usava a mesma camiseta do The Doors que eu estava vestindo horas
antes, mas apenas aquilo. Aninhou-se comigo no colchão jogado na
sala, cobriu-se e me olhou nos olhos.
- Eu sei o que você tá sentindo – disse-me.
Respirei fundo, tentando entender. Fechei meus olhos, esperando
alguns momentos de lucidez, mas quando o abri, ela ainda estava ali.
- Não precisa tentar fugir de mim. Não quero o seu mal.
Tentei acreditar naquilo, mas por algum instinto primitivo, do qual o
homem já não sabe mais, não sentia a verdade naquilo, afinal ela
era a Ilusão.
Me beijou na boca. Lábios macios que sugavam minha infelicidade. Um
toque suave com a palma da mão sobre meu peito.
Quantos anos eu tinha? Não sabia mais. Apenas estava dentro do meu
apartamento, fotos jogadas no chão, a janela aberta com a fria brisa
entrando, e Ilusão ao meu lado, aquela belíssima mulher.
Eu podia duvidar de tudo, mas ela estava ali e nada mais importava.
Lembrei-me dos doces beijos da minha esposa. Será que era tudo por
amor?
Ilusão sorria para mim, como se pudesse ler meus pensamentos. Talvez
ela tivesse esse poder.
- Você é um cavalheiro, um lorde. Tem que fazer alguma coisa.
Seus olhos me deixaram e espiaram a janela com o vento fresco. Sua
materialidade foi sumindo, até que estava sozinho. As fotos
continuavam naquele mesmo lugar.
Levantei. Uma pequena dor em meu peito não me parou. Andei até a
janela e senti a minha última brisa.
Fechei meus olhos e vi Ilusão me observando. Seu beijo era triste e
doce, e sua missão era me deixar mais pronto para tudo aquilo.
Meus sentimentos estatelaram-se no chão, onde a Morte finalmente me
aceitou.