sábado, 5 de setembro de 2015

A Garota que não Sonhava

Todos os dias ela olhava pela janela do quarto e observava durante alguns poucos segundos aqueles trabalhadores.
No início, quando foi obrigada a viver naquele lugar, passava horas vendo aqueles homens minúsculos mexendo com areia e pedra, mas a desmistificação da rotina tornou aquele singelo ato em algo estéril, comum, sem um motivo.
Ao acordar cedo, tentava passar o maior tempo possível sem pensar em nada, apenas esperando um segundo suspiro da respiração. Levantava e dava um bom dia silencioso do alto aos trabalhadores que erguiam dia a dia sua torre alguns andares a mais e não respondiam pela incapacidade de escutá-la.
Ela se lembrava perfeitamente de quando chegou naquele lugar, que até então tinha pouco mais de oito andares. Agora, pela sua janela, conseguia enxergar ainda mais distante no horizonte, e se não fosse pelas densas nuvens cobrindo o mar, poderia imaginar que conseguia enxergar o outro lado da tempestade.
Mas não.
Eu não posso confiar em alguém que não fecha os olhos e sonha, alguém que deita na cama e passa oito horas dormindo sem acordar no outro dia abalado ou feliz por aquilo que sua imaginação lhe mostrou.
Mas que imaginação afinal teria ela, que vive num quarto trancado cada vez mais distante do mundo real? E os andares sobem e sobem, dando a ela a solidão que acalma e os ventos que empurram, as nuvens passageiras e as carregadas, até que num alegre vislumbre passamos das nuvens e estamos frente a frente com o Sol.
Aquele era o momento de julgar todas as coisas que aconteceram, sem mentiras, apenas uma sábia reflexão da vida.
Mas não.
A garota que não sonhava acordou e olhou novamente pela janelinha.

Lá do alto, vários homens trabalhavam.

domingo, 30 de agosto de 2015

O monstro que mora aqui dentro

Sobre minha vida amorosa, só tenho a te dizer que não me arrependo.
Digamos que minha vida amorosa seja tratada como todos os primeiros meses de meus relacionamentos. Vejo-a com uma infinidade de coisas bonitas, gramados verdes, filtros dos sonhos, que agradam meus olhos e também os sorrisos, aqueles brancos com as fronteiras de todos os lábios macios se distanciando o máximo que conseguiam, seguidas de uma bela gargalhada ou risadinha tímida.
Esqueço o que se passa depois desse primeiro mês. Tento não guardar rancor por nada o que acontece em minha própria mente, e muitas vezes o preço a se pagar por isso é esquecer o que aconteceu.
É fácil perceber que meus dias já não correm mais. Normalmente eu me lanço à meta de não cair sobre esse véu amoroso que nos cerca, mas a vida não nos dá muitas escolhas. Quando reencontro com essas profundas decepções, acabo no cantinho do meu quarto, acolhido pelo conforto da minha coberta e alguma coisa que fugisse à mente na tela do notebook ou nas letras de um livro.
Assim ficava, até perceber que passou.
Quando saía ao Sol, já não era mais dia. Voltava e dormia.
Em muitos momentos acabei em pesadelos profundos, e acordava durante a madrugada soluçando sem conseguir respirar muito bem, e foi numa dessas que decidi caminhar.
Não havia mais ninguém na rua como é claro de se pensar para essas horas da noite, porém de alguma forma, você esperava pelo ônibus.
Não sabia dizer se era uma das primeiras ou últimas rotas daquele dia, mas você estava lá, e parecia também não saber dizer, pois ele não passou.
Em vez disso, ficamos conversando horas e horas até a escuridão dar lugar ao cantar dos pássaros.
Sua solidão era igual à minha, minha alma era igual à sua, estabelecendo palavras soltas a cada resposta dada. Como naquele primeiro suspirar frio que se dá quando acorda num sítio, encontrei-me sem poder me concentrar na realidade de nossas palavras, e a noite foi e foi...
Mas então o ônibus finalmente passou e você foi embora.
Já não sei se foi um sonho, visto que assim que voltei, caí na cama novamente.
Escrevo isso para que um dia talvez encontre isso em algum canto qualquer da internet, e entenda que eu não te segui pois sabia que duraria apenas o primeiro mês, para depois se transformar em outra miserável história de arrependimento e esquecimento.

Mas agora, como saberei eu, como seria subir naquele ônibus e te seguir pela vida?

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Sobre não ser aceito

Eu sabia que nunca mais seria o mesmo.
Acordei numa maca, coberto por um lençol branco e vários equipamentos do meu lado. Até certo ponto entendia o que havia acontecido.
A única pergunta que tinha era “por que a morte me recusou?”. Não fazia sentido, sendo que era eu quem dirigia o carro, sendo que era eu quem estava drogado, sendo que era minha a responsabilidade com a família.
Mulher, filho e filha.
Por que apenas eu tinha ficado?
Era como se algo importante estivesse oculta, ou que tivesse pulado um episódio importante daquela série chamada Minha Vida.
Realmente não entendia.
Uma agulha injetava um líquido amarelo no meu braço direito. Tirei-a dali e sentei. Uma forte dor de cabeça me arrebatou.
Estava usando uma daquelas largas roupas de paciente, com parte das minhas nádegas para fora. Sobre a poltrona encontrei minha camiseta velha do The Doors e uma calça jeans da qual não lembrava, porém que me servia perfeitamente.
Ao erguer os braços para colocar a roupa, senti uma dor lancinante sobre meu peito. Percebi que vários pontos fechavam uma sutura provocada por cacos de vidro. Eu não podia forçá-la.
De alguma maneira, ninguém me impediu de sair do hospital. Andei tranquilamente – embora um pouco curvado – pelos corredores. Entrei no elevador, e saí pela porta automática do primeiro andar.
O frio de outono bateu em meu rosto, e eu percebi que estava com fome. Bati as mãos no bolso e escutei algumas moedas. Infelizmente, aquilo só dava para o café e a passagem de ônibus.
Fui até uma padaria ali próxima da saída do hospital e pedi meu expresso. Aquilo me esquentou um pouco, e eu decidi terminar de tomá-la numa praça que se estendia por um grande gramado verde coberto de folhas secas.
Uma música desconhecida tomava minha mente. Talvez fosse ela que eu escutasse no momento do acidente.
Ao atravessar a avenida, notei uma mulher sentada num banco próximo ao centro da praça.
Ela era morena, mas tinha os cabelos tingidos de loiro, de uma maneira que só a raiz mostrava-se negra como seus olhos. Eram longos e macios, mesmo após anos de tintura.
Óculos caíam sobre seu nariz, de modo que não se encaixavam direito e era preciso arrumá-lo após algum tempo de leitura.
Ah, tinha o livro também, mas que não consegui identificar.
Eu a conhecia. Na realidade, aquela mulher estava em minha mente desde meus doze anos.
A primeira vez que a descrevi, ela saía da chuva e entrava numa loja de roupas. Com um corpo juvenil, vários homens ficavam tentados ao vê-la.
A segunda vez, era uma bruxa. Nascida em meio à inquisição, fora treinada nos rituais considerados subversivos pela Igreja, e mandada à fogueira aos trinta e três anos de idade.
E assim foi, sucessivamente, livro após livro. Aquela mulher era uma criação minha, diretamente da mente.
Caminhei até ela e parei. Ergueu seu rosto e me olhou com o rabo dos olhos. O que estava acontecendo comigo?
- Olá – ela me disse.
- Olá – eu respondi.
- Há quanto tempo.
Sim, fazia tempo que ela tinha desaparecido do meu espaço criativo. Seus olhos escuros foram trocados por rainhas, embaixadoras, e até outra escritora em seu livro mais recente.
- Você existe de verdade?
- Sim. Estou aqui, não estou?
- Não faz sentido.
Levantei minhas mãos para tocá-la.
Por alguns instantes, delirei. A mulher estava indo em direção a um homem e seu cachorro.
Sua mão estava suja de sangue, e quando o encontrou, transformaram-se em minha mulher, eu e meu filho.
Quando recuperei a consciência, o cão estava atropelado no chão, ela estava ainda ao meu lado e o rapaz gritava por ajuda.
O que era tudo aquilo?
- Eu realmente estou contigo – ela me olhava com um pensamento malicioso.
- Você é algo da minha cabeça, algum distúrbio depois do acidente.
- Não. Eu vim porque a Morte não te quis, depois de ser jogado às traças pela Vida.
Suas mãos enluvadas aproximaram-se do meu rosto, e ergueram minha cabeça até que meus olhos pudessem enxergar aqueles olhos negros. O céu ficou laranja, as pessoas sumiram da praça e só havia ela, Ilusão, com os cabelos loiros brilhando, entretendo-me com luzes de várias cores diferentes. Era como se minha fotofobia não existisse mais.
- Eu sou o que sobra quando você não tem mais nada, meu homem.
Refleti sobre o que me foi dito. Fazia sentido, mas não era lógico.
Eu nunca havia escrito sobre a personificação da Ilusão.
- Me segue?
O mundo voltou ao normal, eu lhe dei minha mão, e saímos.
Apaguei novamente.
Acordei em casa, no colchão. Fotos da minha família estavam espalhadas pelo chão. Eu estava nu, e uma música calma saía do Stereo da TV. Beatles, talvez. Ou apenas alguém com a voz do Paul McCartney.
Um barulho de torneira veio do banheiro, e a porta se abriu.
Era ela, Ilusão.
Usava a mesma camiseta do The Doors que eu estava vestindo horas antes, mas apenas aquilo. Aninhou-se comigo no colchão jogado na sala, cobriu-se e me olhou nos olhos.
- Eu sei o que você tá sentindo – disse-me.
Respirei fundo, tentando entender. Fechei meus olhos, esperando alguns momentos de lucidez, mas quando o abri, ela ainda estava ali.
- Não precisa tentar fugir de mim. Não quero o seu mal.
Tentei acreditar naquilo, mas por algum instinto primitivo, do qual o homem já não sabe mais, não sentia a verdade naquilo, afinal ela era a Ilusão.
Me beijou na boca. Lábios macios que sugavam minha infelicidade. Um toque suave com a palma da mão sobre meu peito.
Quantos anos eu tinha? Não sabia mais. Apenas estava dentro do meu apartamento, fotos jogadas no chão, a janela aberta com a fria brisa entrando, e Ilusão ao meu lado, aquela belíssima mulher.
Eu podia duvidar de tudo, mas ela estava ali e nada mais importava.
Lembrei-me dos doces beijos da minha esposa. Será que era tudo por amor?
Ilusão sorria para mim, como se pudesse ler meus pensamentos. Talvez ela tivesse esse poder.
- Você é um cavalheiro, um lorde. Tem que fazer alguma coisa.
Seus olhos me deixaram e espiaram a janela com o vento fresco. Sua materialidade foi sumindo, até que estava sozinho. As fotos continuavam naquele mesmo lugar.
Levantei. Uma pequena dor em meu peito não me parou. Andei até a janela e senti a minha última brisa.
Fechei meus olhos e vi Ilusão me observando. Seu beijo era triste e doce, e sua missão era me deixar mais pronto para tudo aquilo.

 Meus sentimentos estatelaram-se no chão, onde a Morte finalmente me aceitou.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A primeira coisa que vejo quando acordo.

Acordei num sábado de manhã na república.
Eu estudava Cinema numa cidade do interior brasileiro chamada Aldebaran, que era conhecida pelas cavernas e seu tom “místico”, descrito em sites de turismo como um ótimo local para o avistamento de Duendes e Gnomos, a pequena cidade que durante as tardes cheirava a Bolo de Fubá nas estreitas ruas do centro.
O Sol apareceu no céu poucos minutos antes, e a primeira coisa que veio à minha cabeça foi o horrível sonho no qual minha ex-namorada me mordia loucamente até uma fumaça branca sair dos meus ossos.
Não havia uma única marcação para aquele dia na minha agenda: nem perfomances teatrais nem grupos musicais se apresentando nas praças. Isso significava que eu finalmente tinha um tempo para arrumar meu quarto.
Peguei um saco preto de cem litros e comecei a jogar tudo o que não tinha valor fora. Meu guarda-roupa cheirava a mofo, algo com o qual eu deveria realmente me importar, visto que a alergia que atacava em meu nariz piorava a cada minuto que passava.
Do fundo de uma das gavetas, encontrei uma caixinha preta, muito parecida com a qual a garota que ficara do meu lado durante tanto tempo recebeu sua aliança de dois anos de namoro. Mas não podia ser aquela, eu não a teria trazido para Aldebaran. Estava leve e aparentemente vazia. Após abri-la percebi que nem espuma tinha ali, deixando apenas um papeloide branco que forrava o interior da caixa.
Não pensei duas vezes, foi uma das primeiras coisas a acertar o fundo do saco preto.
No final, peguei tudo e levei para fora, ou pelo menos esse era meu objetivo: eu juro que não tinha bebido, mas bati e rasguei todo o saco várias vezes no caminho, deixando o sujo conteúdo do saco cair no chão, me causando cada vez mais trabalho e irritação.
Voltei ao quarto e comecei a organizar cada coisa no seu lugar. Abri a terceira gaveta, e lá estava novamente a caixinha negra que eu tinha jogado no lixo.
Que besteira, pensei comigo, estou chapado. Mas não, eu não tinha usado nada ainda naquele dia.
Abri-a novamente, esperando encontrar algo no seu interior, e para meu espanto, encontrei.
Um pequeno pedaço de papel quadrado e colorido contrastava-se com o forro branco da caixinha. Era fácil identificar aquilo como um doce, alma, bottom, buttler, build, Dietilamida do Ácido Lisérgico, L. Acid, LSD.
Lembrei dos ensinamentos de Huxley e minhas glândulas sublinguares recebiam a dosagem da droga ilegal naquele país.
Foi uma brisa gostosa, suave. O suficiente para a felicidade daquele dia, ou esquecer de um passado amoroso do qual eu sentia falta.
Você merece coisa melhor, eu dizia a mim mesmo.
Aparentemente, a bad bateu.
No domingo o Sol nasceu um pouco mais cedo.
Levantei, fiz café e acendi um cigarro. Mais tarde meus amigos chegariam para dar vida à casa que durante as semanas não fazia silêncio. Era incrível que naquele momento as pinturas e rabiscos na parede não estivessem recebendo as fortes vibrações sonoras que saíam das caixas de som dos computadores.
O vento frio levantou os pelos do meu braço, e decidi pôr uma blusa. Lembrei da qual eu havia ganho de uma garota que mudara minha vida tempos antes, cinza e verde, com duas cobras se enrolando em torno de um raio.
Coloquei-a e voltei para o quintal com meu cigarro e o café.
Hoje em dia eu me pergunto: como eu podia ser tão inocente a ponto de colocar na minha boca qualquer coisa que parecesse abrir minhas Portas da Percepção?
Senti um bizarro conteúdo nos largos bolsos daquela blusa. Era a caixinha negra novamente. Seu conteúdo estava praticamente vazio, com uma exceção: um pequeno pedaço de papel quadrado e colorido que contrastava com o forro branco da caixinha.
E foi assim no outro dia, e no outro também, até que na quarta-feira o Sol decidiu nascer mais tarde do que na terça-feira.
Corri procurar por todo o meu quarto aquele estranho recipiente que me trazia um pouco de felicidade a cada dia. Nada. Todos os bolsos vazios, todas as gavetas cheias de coisa que com nada se pareciam com a caixinha de alianças negra.
Eu devo ter sonhado, claro.
Esse fim me fez mal.
Estarei eu alucinando?
Cheguei na cozinha e fiz meu café como no sábado. Enquanto a água esquentava, encostei no batente que dava ao jardim e comecei a ler um livro sobre Carcosa.
O líquido na panela borbulhava e soltava um estranho cheiro de madeira. Pequenos pedaços brancos e naturais boiavam em meio ao pequeno caos: cogumelos.
Que merda é essa?
Sim. Estou alucinando;
Estaria algum amigo meu fazendo uma piada? De onde surgiu aquilo?
Mesmo assim, era um número grande de chá sendo feito, não teria nada demais tomar apenas alguns golinhos.
Tomei o suficiente e esperei. Comecei a sentir que algo tomava conta da minha vida. Como uma manipulação física e mental que eu poderia estar sofrendo a cada instante.
Então acordei, e assim que cheguei na cozinha a água já borbulhava com o cogumelo novamente.

E foi durante algum tempo. Me perdi em meio a tudo isso. Aparentemente meus amigos haviam sumido, e pouco mais de vinte dias depois do primeiro chá, acordei com profundas dores de cabeça. Meu estômago se remoía como se ele não recebesse alimento há muito tempo. O hálito que passava pelos meus lábios cheiravam a adubo, e meu dentes bizarramente tinham a dureza de madeira.
A primeira ação daquele meu dia foi correr ao banheiro liberar qualquer ácido gástrico que quisesse sair, que quisesse sentir o vento frio antes de encontrar a água e cerâmica. Meus olhos ardiam pela gosma de baixo ph que cortava minha garganta. Me arrastei à pia, sentindo o gosto de sangue na minha língua e escorrendo por fora dos meus lábios.
Hálito.
Estiquei meu braço até o pegador do armário sob a pia, abri-o e encontrei a caixa em que guardava minha escova de dentes.
Eu não sentia muita coisa.
Meus pés estavam dormentes.
Qualquer objeto com cerdas tinha sumido daquela caixinha.

No seu interior só havia uma injeção e seu conteúdo prateado-transparente.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Legalização do uso recreativo do Amor (ou a liberação do cultivo caseiro).

Eu ainda não entendi direito o que aconteceu.

"Que tenhamos paciência! Ninguém sabe tanto assim do amor para que possamos liberá-lo. Quem estudará seus efeitos colaterais? Qual grupo discutirá a dosagem e a maneira certa de utilizar? Isso não existe."

Dependendo do lado que olhamos, há a mocinha e o vilão. Ou o mocinho e a vilã. Ou a vilã e a vilã, mas nunca o mocinho e a mocinha. É um mal inerente ao Ser Humano o vício à sensação do poder.
Abençoados são aqueles que não sofrem das depressões amorosas. Quem sabe nesses casos o amor não dá uma trégua na capacidade de criar rancor e surgem alguns mocinhos e mocinhos, ou mocinhas e mocinhas, ou mocinhos e mocinhas. Ah.
Mas até lá, o amor deve ser proibido.

"Deve estar me achando insensato, talvez até louco, mas saiba que o amor pouco bem fez para nossa espécie. Os grandes poucos que se amaram tiveram tristes fim, e os poucos muitos que viveram felizes para sempre acabaram esquecidos, das histórias gregas aos casais magnatas imperialistas."

Veja Medeia: matou a esposa do ex marido, o Rei, e até mesmo seus próprios filhos para machucar a mente e o coração de Jasão. No fim, fugiu à Atenas, e numa revolução amorosa, acabou numa dessas de felizes para sempre. Já Jasão, pobre coitado, por ter seus privilégios machistas acabou derrotado pelos próprios sentimentos quebrados, esse que já havia até capturado o Velocino de Ouro.
Nem os mais fortes resistem a ele. Veja se não é cabível esse argumento?

"Eu não sofro mais com amor. Algumas pílulas me ajudaram. Parece que de alguma forma, tudo mudou, e é tão simples."

Eu juro que entendo esses proibicionistas. Se me sobrasse tempo, até participaria mais ativamente do movimento, porém ando muito ocupado com o trabalho. Sou marceneiro.
Todas as vezes que me iludo amorosamente, faço um pequeno porta retrato de vértices arredondadas e o vendo por um preço determinado a partir do número de dias em que fiquei iludido. Trato a madeira com todo o carinho do mundo, de uma forma que aquele objeto dure tanto tempo com seu próximo dono que nunca haverá chance de reclamarem o dinheiro de volta. Se eu não fosse cético, iria atrás de saber se todos os sentimentos guardados naqueles pedaços de madeira mexeram na vida de seus proprietários.

"Não me venha com esse papo furado de liberdade e lei. Escravismo era legal e estava dentro das condições de liberdade de seus senhores."

Até numa guerra a dor causada é proposital. Sentimos a malícia do inimigo no buraco da bala cravada no peito. No amor, todos estamos numa sala cercados de fuzileiros. Quando o sino toca, todos atiram em nossos corpos, sem saber quem foi quem, tendo plena noção de que aquilo é a ordem de algo acima da capacidade de controle social dos próprios fuzileiros. Você não sente o sorriso no canto da boca do soldado, simplesmente cai, esperando que haja algo para te segurar.

"Chamo agora o perito de defesa."

Se você pudesse desenhar o amor, qual o formato mais simples que ele poderia ter? Sem dúvida é algo abstrado, não podendo relacioná-lo com a simetria do círculo ou as regras claras dos quadrados e triângulos. Talvez seja algo mais caótico, como as órbitas planetárias. A chance de que uma estrela ejete massa para formar planetas, e que esses planetas descrevam órbitas constantes é minúscula. Qualquer acentuação matemática torna o sistema propício a choques internos. No fim, toda a poeira liberada pelas colisões pode acabar formando novos Planetas.

"É natural. Está intrínseco em nós. Haverá mais drogas a cada dia, aliviando os sintomas do amor, da raiva, das crises de abstinência. Nunca foi demonstrado um efeito colateral do uso controlado. "

Não espero que a Lei seja seguida como manda, demora a um povo entender que determinadas mudanças bruscas levam à melhoria das condições de vida. Além do mais, se o amor acabar de repente, tenho medo das crises que acontecerão na psique de muitos de nós. Revejo minhas palavras e percebo o quão duro fui comigo mesmo durante tanto tempo. Como minhas costas doeram nas primeiras semanas com o peso desse sentimento. E como eu disse, você não espera.

"Não é porque é natural que é correto ou faz bem."

Rogo ao Oceano Atlântico que leve embora todas as minhas esperanças. Rogo ao Sistema que acabe com meu sofrimento. Que pelo menos comigo seja rápido, para não haver dor ou arrependimento sobre minhas opiniões pessoais. Talvez um dia eu mude, e quando tudo estiver correto, com o Amor sendo o principal oponente no "Homem vs  A Si Mesmo", só então, farei minhas delineadas e pontiagudas vértices como bem devem ser.

"Com o réu foi encontrado três itens: uma rosa vermelha, uma pena de calopsita, e um retrato de madeira."





"É fictícia, né?"

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Sylvia Rank

Eu só quero escrever, só isso.
Tenho tentado fazer um filme, mas minha criatividade  aparentemente se desfez de mim como uma tartaruga-marinha mãe que deixa seus ovos na praia, confiando que eles saberão os próximos passos.
Esse tipo de coisa, esse tipo de tratamento de choque, a falta da criatividade que faz meu ser - ou às vezes acredito na realidade seja meu eu-lírico - faz com que meu coração se dê a coisas que não podem mais tocar-lhe sem causar um alvoroço.
Eu penso em Vinícius de Moraes todas as vezes que sofro por amor: pergunte pro seu Orixá, o amor só é bom sem doer. Não gosto de acreditar nisso, mas um conjunto de fatores na minha vida, inclusive o atual, me fazem ser realista em relação à esse sentimento que dói e dói aqui dentro de mim.
Ficar quatro horas esperando uma mensagem sobre uma música, enquanto tremo e suo de ansiedade, esse tipo de coisa só acontece quando alguém muito importante reaparece na minha vida, ou, como eu já venho desacreditado de tão raro que este evento é, aparecer alguém espontâneamente.
E não digo apenas em relação ao amor, mas também aos relacionamentos como um todo. Mas eu procuro. Procuro, procuro, e aquilo que eu sempre pretendo dar às pessoas - atenção - , acaba longe de ser uma característica das pessoas que encontro.
Eu tenho uma certa facilidade em criar na minha vida felicidades instantâneas. Coisas que só duram aquele momento, aproveitar aquele momento, ficar com meus amigos, aproveitar quem está à minha volta. Às vezes, surge alguém um pouco mais especial, e me sinto um pouco mais confortável durante um tempo, mas sendo bem sincero, não sou a melhor pessoa do mundo, e quando volto à minha rotina normal, sempre tendo a me desvincular completamente dessas pessoas.
Acaba que, com isso, há um grande filtro nas minhas relações chamada ma routine. Não que minha rotina seja difícil, ou que não haja espaço para encaixar meus amigos, mas que dentro dessa rotina me fecho sem querer; paro de falar diariamente com meus amigos mais velhos, paro de ligar para essas pessoas especiais que me aparecem.
Menos com uma pessoa.
Existe ela, a femme fatale da minha vida, que faz com que minhas pernas tremam e eu sinta um frio terrível.
Penso numa mistura de dois dos meus filmes preferidos, La Dolce Vita e Fellini 8 1/2. Os dois são de Federico Fellini, mas minha história é algo parecido com a de Guido de 8 1/2, tirando o fato de que entre todas as mulheres que atrapalham sua vida, surgiu uma Sylvia Rank de La Dolce Vita.